Por Eduardo Carvalho
Entregou as alianças ali mesmo: quarto 53, hotel Abbatial, Boulevard Saint-Germain com Rue des Bernardins. Corriam os primeiros minutos do ano. Traje: pijama. Um momento tão especial quanto desemoldurado – sem glamour nem foto nem nada.
Era no que o homem velho pensava agora, mais de 30 anos depois, enquanto o garçom do Le Metro não voltava com o bourgogne da casa. Aos 70 e tantos, ainda sentia os cheiros, os gostos e as cores daquela Paris deles dois.
A taça chegou acompanhada de um pote de azeitonas verdes. Deu um grande gole e viu, do outro lado do boulevard, a loja onde compraram a bebida para a ceia de Ano Novo que antecederia o pedido. O coroa francês ensinando-a a abrir a garrafa uma hora antes de beber e a deixá-la do lado de fora da janela – que era pro vinho respirar e gelar. Durante muitos e muitos anos, e mesmo nos 50 graus da Zona Norte do Rio, eles repetiam, entre risos:
– Abre o vinho e coloca aí na fenêtre!
Sorveu o tinto um pouco mais. E pôde vê-los descendo do táxi, numa outra madrugada hoje perdida no passado. Pareceu ouvir de novo aquele “Ah, c’est la lune de miel!”, balbuciado pelo motorista. Vinham de um jantar inesquecível no L’Avenue e o clima de encanto e paixão levou o chauffeur ao diagnóstico certeiro.
Tudo era novo. Fresco. Mesmo a cidade, velha conhecida já naquele tempo, ganhava nuances, tons e sons outros. Como num fim de tarde cinza no Jardin du Luxembourg, o guarda gritando para anunciar o iminente fechamento do parque:
– La fermeture du jardin, messieurs et dames! – bradava, entre apitos, enquanto eles apertavam o passo temendo a reprimenda que nunca veio.
O vinho continuava deixando a taça e as muitas memórias se sucediam, frenéticas. Os filhos lindos. Netos. O apoio mútuo diante de tantas perdas. O longo inverno em que ela esteve debilitada. O grande susto com a descoberta da doença dele. A superação de tudo. As voltas pelo mundo. Pequenas brigas. Grande briga. E Paris, de novo e de novo.
Um choro rápido lhe salgou os olhos. Pagou a conta, vestiu o sobretudo cinza e saiu andando com a dificuldade companheira dos últimos anos.
Na caminhada pelo boulevard, recitou mentalmente as palavras de Hemingway: “Acabamos sempre por voltar (a Paris). Sejamos nós quem formos, mude Paris no que mudar, ou sejam quais forem as dificuldades ou as facilidades com as quais, ao regressarmos, nós nos deparemos. Paris vale sempre a pena, pois somos sempre recompensados por tudo o que lhe tivermos dado”.
Duas quadras depois, parou na frente da porta vermelha e respirou fundo antes de entrar.
– Cinquante trois, s’il vous plaît – pediu à moça da recepção.
Ao chegar ao quarto, o inesperado tinha trazido uma surpresa: ela.
Em absoluto silêncio, abraçaram-se com força durante longos minutos.
Pela janela, ainda era possível ver, ao longe, as pontas das torres de Notre-Dame. E do lado de fora, o vinho, já aberto, respirando e gelando.
Eduardo Carvalho, 40 anos, é jornalista. Não vive em Paris, mas Paris vive nele. Mora no Rio de Janeiro, onde lançou, em 2010, o livro “Sambas, boemia e vagabundos” (Ed. Multifoco), reunião de crônicas sobre rodas de samba e bares da cidade.
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47 Comentários
Michele Branca
Amei!!! Uma história de lembranças que a gente se identifica por ser tão sutil e comum, e é encantador por ter o mais perfeito dos cenários: Paris!
Cada rua, cada quarto, móveis, palavras, gestos… Enfim, tudo que é originário de Paris se aproxima da perfeição.
jorge fortunato
Viajei no futuro…enquanto lia me imaginava em paris daqui a 20, 30 anos com meus setenta e tantos anos, relembrando meus momentos na cidade. ótima crônica.
Viviane Gebara
Paris….Hemmingway definiu com perfeição ,”Você acaba sempre voltando …”. Eduardo, suas palavras trouxeram um mundo de emoção !!! Muito lindo!!!
lea
Ai, chorei……
Geruza
Amei a crônica . Acabo de voltar de Paris e foi a minha segunda vez nessa cidade maravilhosa !! Sabe… a sensação de que eu preciso voltar começa ainda no Charles de Gaulle. Amo Paris!!
Fabiana Ribeiro
Estive poucos dias por Paris… mas ela continua em mim. Sei que um dia retorno. Talvez não mais sozinha, mas se assim for, ela (Paris) com certeza me fará companhia…
Raquel Peralta
Lindo texto! Traz lembranças que nunca quero esquecer. Estive em Paris o ano passado, era um sonho e voltei totalmente apaixonada por tudo que vi. Quero voltar muitas outra vezes, e não passa uma semana sem que eu suspire por Paris!
Rosa Brown Fernandes
Tem 1 mês que retornei de Paris onde fui pela segunda vez desvenda-la é o meu desejo.
Pretendo fazer isso adoro descobertas fugir do lugares “turísticos “. Como fui com familiares que não a conheciam não pude ainda realizar este desejo.
Eu e meu marido somos apaixonados por ela e adoramos passear, andar e como dizemos:conhecer suas peculiaridades, seus segredos que só os que lá vivem ou que são íntimos tem oportunidade.
Infelizmente estava suja e muitas moradores de rua inclusive famílias isso me deixou entristecida.
Mais Paris é Paris e mora no nosso coração.
Parabéns pela crônica. Linda, comovente, retratou situações sensações que já vivemos: o vinho para respirar e gelar foi uma delas.
Você expressou de forma delicada e simples o que para muitos é difícil SENTIMENTOS.
Marluce Amorim
Repetindo o texto,’ nao vivo em Paris má, Paris vive em mim! ‘ sou apaixonada por esta cidade! “ADORRO”! Já fui duas vezes e acho q nao conheço nada! Pretendo voltar outras e outras vezes e, sei q vou amar e nunca perderei o encanto por esta LINDA E ENCANTADORA PARIS ! Je T’aime !
Mari Angela
Adorei! Lindo!! Emocionante!!!