Este post foi publicado em dezembro de 2013. O publicamos de novo em homenagem à Beth, uma das primeiras pitaqueiras do Conexão Paris. Beth nos deixou no dia 6 de dezembro. Este grupo, os pitaqueiros, hoje amigos do coração, faz parte de uma outra época, de um outro rítmo. Os leitores se reuniam aqui, no CP, e conversavam com calma, se tornavam amigos. O rítmo acelerado das redes sociais acabou com a reunião do quintal do CP. Mas não acabou com os laços criados nesta época. Um carinhoso abraço, Evandro, a Blonde ficará na nossa memória.
Por Evandro Barreto, autor do livro Na Mesa Cabe o Mundo, lançado pela Editora Conexão Paris
Noel estava muito cansado. Depois da queda da cortina de ferro e do ingresso da China nas delícias do consumo, o trabalho aumentou demais. Agora ele tinha que começar as entregas pelo leste e dar a volta ao mundo inteiro para atender às encomendas das crianças de todas as cores, latitudes e longitudes.
Por uma questão de método poético, havia escolhido Natal, no nordeste brasileiro, para deixar o último pacote. Não encontrou meia ou sapato debaixo da cama da criança para colocar o presente. Aliás, não havia nem cama. O jeito foi deixar a Barbie fake sobre o par de Havaianas junto à rede.
O sol nascia no Atlântico quando ele tomou o rumo de casa. Colocou as renas no piloto automático e ajeitou-se no trenó para um cochilo. Quando acordou, o dia já ia adiantado e estava sobrevoando Gibraltar. Espreguiçou-se, decidiu que o Polo Norte ainda estava muito longe e resolveu presentear a si mesmo com um pit stop em Paris. Afinal, não é todo dia que se pode encontrar Cézanne, Matisse e Picasso juntos, ilustrando a história do início do século XX — graças à sensibilidade e ao dinheiro da família Stein, ganho com os bondes de San Francisco e muito bem aplicado na fabulosa coleção exposta no Grand Palais. Tinha que ser agora, a mostra encerrava-se em poucos dias.
Noel mandou mensagem pelo smartphone para madame: “Pegue já o trenó de reserva, pouse nos Jardins des Tuileries e me encontre na fila do Grand Palais”. Quando ele chegou lá, Madame Noel já o esperava com os ingressos. Tinha furado a fila na base do “você sabe com quem está falando?”.
Deslumbramento total. Obras dispersas pelo mundo inteiro voltavam a reunir-se na cidade onde haviam se agrupado pela primeira vez. O cansaço que ainda restava dissipou-se no instante em que o casal Noel parou diante do menino nu com cavalo, provavelmente a melhor peça da fase rosa de Picasso. Adiante, outro Picasso do mesmo período: o retrato de Gertrude Stein, onde a força da personagem parece ter queimado os tons do fundo. Uma sequência de Matisses e logo o impacto: as cinco maçãs de Cézanne. Substância pura, imune a adjetivos, levou Noel a entender, enfim: sem Cézanne, jamais Gertrude teria descoberto que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”.
Saíram da exposição com os olhos embotados de encanto e lágrimas. Foi preciso caminhar em torno do Grand Palais para restaurar um mínimo de normalidade tranquilizadora, se é que se consegue ser normal em Paris.
Chegaram à entrada do Mini Palais. Já que precisavam comer, que fosse ali, onde as grandes janelas que se abrem para o Sena e a Ponte Alexandre III não os deixariam esquecer que a busca da beleza é um dever permanente do olhar.
Foram frugais, em defesa da magia do momento. Nada de álcool, uma garrafa de água Vittel. Para madame, apenas uma entrada: galantine de volaille truffée et foie gras de canard. Para ele, somente um prato: ris de veau em croûte. Uma sobremesa e um café depois, caminharam abraçados e lentamente em direção às renas, já com as saudades do presente ditando o ritmo dos passos.
Restaurant Mini Palais
Grand Palais, Avenue Winston Churchill | 75008 | Paris
Metrô: Champs-Élysées – Clemenceau
Tel.: +33 01 42 56 42 42
Aberto diariamente, das 10h às 2h
www.minipalais.com
Esta crônica foi extraída do livro Na Mesa Cabe o Mundo, de Evandro Barreto, à venda no site Minha Viagem Paris.
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38 Comentários
Jacqueline
Jane Curiosa
Me causou espanto esse foie gras de canard saboreado por Madame Noel que, sendo mulher do Papai Noel, deveria personificar também a bondade, a generosidade, a sensibilidade e, por isso, ser contra o sofrimento dos bichinhos presos e alimentados à força para alguém ter o gosto fugaz de um foie gras. Será que Dodô quis chocar mesmo? Mostrar que ninguém está 100% livre de maldade e egoísmo? Se Madame Noel pode, então o resto do mundo está perdoado para saborear seus pecadinhos sem remorso? Nossa, a quantas interpretações está sujeita esta frase colocada assim em meio a um texto primoroso! Terá sido essa a intenção?
Adorei. Justamente a contradição quando se está mergulhada na poesia dessa noite de Natal tão linda em que Papai Noel se dá um presente que eu também gostaria de me dar. Parabéns ao autor!
Madá
Dodô lindo demais! Essa exposição marcou mesmo, fiquei também muito emocionada com a sensibilidade dos Stein que a curadoria recuperou pra gente. Felicidades ao casal Noel! Obrigada Lina por reviver a crônica aqui na época certa.
Tatyana Mabel
Dodô, peguei a Barbie fake aqui em Natal! rrsrsrs Beijocas!
Eloisa Barbosa
Adorei! Pura poesia…
Jane Curiosa
Lucia Carneiro
Deixei-lhe um recado no post do Lustre Gabriel.
E esse lustre ficará lá para sempre,enquanto durar,bien sûr.
Lenna Ranghetti
Dodô e sua sensibilidade, estabelecendo esse paralelo entre o Natal de dois mundos!
Jane Curiosa,(que rima com prosa que rima com rosa)
Vai da página 77 à página 80 do referido e gostosíssimo livro do Dodô.
Tem uma pedra no meio desse caminho: Madame Noel comendo foie gras de canard,logo na véspera de Natal. É para ser cruel?
Uma pergunta: Madame Noel precisa ser boazinha o ano todo? Se sim, ela tem direito de ser mazinha ao menos no final do ano…ai, aqui eu ia falar mais alguma coisa…mas daí vocês iriam querer arrancar o meu fuá.
Desde que eu li essa crônica do Dodô,eu lembro de uma música do filme Singin’in the Rain,onde na cena de Moses Supposes, que começa com um exercício,bem,deixem pra lá,assistam um tantinho:
http://www.youtube.com/watch?v=tciT9bmCMq8
(…)
“A rose is a rose is a rose is a rose is/
A rose is for Moses as potent as toeses…
(…)
Maria Eliane Maciel de Sousa Ribeiro
Como Natalense e leitora assídua do Conexão Paris, gostaria de parabenizar o Evandro Barreto pela linda crônica de natal. Aproveito o ensejo para desejar à todos um feliz natal!
Adriana Pessoa
Sensível e lindo conto de natal!
evandro barreto
A todas e todos, muito obrigado e um natal muito feliz.