Por Tatyana Mabel – texto e fotos
Os manuscritos exercem sobre nós um fascínio incomum porque estamos diante do momento da rasura, da hesitação e da gênese das idéias dos seus criadores. Adentrar à sala do Musée des Lettres et Manuscrits é o mesmo que ingressar num templo de construção da invenção humana ainda em convulsão, denunciada pelos cortes, asteriscos, setas que fazem suas ranhuras no texto inicial e nos apresentam o processo de partejamento das obras.
Para o Museu de Cartas e Manuscritos, a escrita em rocha, em papiro, em papel, a datilografia, a pena e o lápis não se separam. É também difícil seccionar gêneros. A música e a ciência estão juntas na mesma seção; a enciclopédia de Diderot e D’Alembert convive com a literatura e os mestres das artes.
Como não ser movida por emoção diante:
. da primeira edição das Fábulas de La Fontaine em verso e ilustrada que você sempre conheceu antes mesmo de saber o que era.
. das colagens de Proust de pedaços de sua obra já impressa em uma espécie de cartolina, com colunas com notas manuscritas sobre o texto.
. dos desenhos do Pequeno Príncipe e de outras obras de Antoine de Sainte-Éxupery em pedaços de página, sem ambições artísticas.
. de dezenas de cartas de Victor Hugo, de Hemingway (escritas sem pretensão em papel de hotel), de Voltaire, Montesquieu…
. dos textos datilografados de Sartre, corrompidos por caneta;
. dos manifestos surrealistas por André Breton.
. do Story-board com os desenhos de Hitchcock para várias cenas do filme Stage Fright (Le Grand Alibi).
. dos desenhos e cartas de Monet, Pissarro, Manet
Estes manuscritos são verdadeiros relicários da mágica fusão entre a obra – ainda em gênese – e os rastos dos seus autores.
Mas se você acha que viu tudo, não se conterá diante:
. do protótipo da lâmpada de Thomas Edison e seis desenhos dos seus ensaios para a criação de uma das maiores invenções humanas;
. dos manuscritos de Darwin e a primeira edição para sua obra máxima;
. dos rascunhos de Einstein para a criação da teoria da relatividade, de Kleper, de Newton, de Marie Curie.
. das partituras originais de Bizet,de Chopin, de Bach, de Mozart.
Recomendo a visita!
Musée des Lettres et Manuscrits – 222 boulevards Saint Germain 75007 Paris.
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37 Comentários
Bárbara
Mais uma para a lista infindável de coisas a fazer em Paris. Na próxima visita não vou deixar escapar. Bem, isso é o que eu digo, mas Paris é tão tão que nunca se consegue cumprir todo o roteiro planejado. Amei a dica! Obrigada.
salete
Existe uma vertente de crítica literária, a crítica genética, de origem bem francesa, que procurar apreender o processo de criação através do cotejo de manuscritos, de de correções de provas tipográficas, etc. Digo bem francesa porque recorre a disciplinas como psicanálise lacaniana, vertentes francesas de teorias do dicurso, etc. Como não é a minha linha de trabalho, é apenas um pitaco prá quem se interessa. Salete
José Rodrigues
Uma das minhas maiores emoções foi visitar a Morgan Library e ver livros e manuscritos originais inacreditáveis.
A Biblia de Gutemberg, partituras originais de Mozart com suas anotações e correções.
Minha irmã teve ainda mais sorte, viu cartas originais dos irmãos Van Gogh.
O falecido John P. Morgan realizou em vida alguns dos meus maiores sonhos criando um pedaço do paraíso na terra.
Imagino que o museu do post seja algo semelhante e gere sensações parecidas.
Para os amantes da música poder ouvir uma sinfonia lendo a partitura original de seu ídolo deve ser uma emoção sem igual.
Aproveito para perguntar, a Biblioteca Nacional da França ou alguma outra biblioteca permite visitações a salas de leitura ou outras do tipo para apaixonados pelo tema?
Lina
José Rodrigues
Você pode entrar na biblioteca François Mitterrand. Vale a pena ir até lá.
Jacqueline
Minha professora de literatura francesa escrevia longuíssimas cartas da França para a família e pedia-lhes para guardá-las e ficar, assim, com um relato dos anos em que aí viveu. Eu guardo alguns cartões escritos por uma estudante em Paris para seu avô. Lançados fora, talvez pela morte do avô, cairam em minhas mãos e os guardei com zelo. Nem conheço as pessoas.
Eu escrevi detalhados e longos e-mails. Mas e-mails…
Acho que vou copiá-los ou meus netos nada saberão de mim e de minhas viagens… Vivemos tempos rápidos de frenéticas mudanças e inseguros quanto à memória.
Mauricio Christovão
Tatyana Mabel: Que relato incrível! Uma crônica familiar, através de gerações…Lindo!!! Espero que prossiga a tradição na sua família, depois de você.
Tatyana Mabel Nobre Barbosa
Evandro,
Também adoro a lareira do CP!
PS: fomos ao “La Fontaine de Mars” apenas para confirmar a maravilha que é seu post. Obrigada! Foi uma tarde maravilhosa e ríamos cada vez que precisávamos pegar o guardanapo, lembrando da sua frase final do post… Abraços.
Tatyana Mabel Nobre Barbosa
Eymar e Haydn,
Que bom saber que a experiência do museu foi feliz para outras pessoas! Assim, fortalece a sugestão aos demais.
Maurício e Madá,
Cada tempo tem suas formas de deixar seus rastos. Mas, o papel, a pedra, o papiro e até a datilografia têm a marca do corpo do autor, impossível às “nuvens”. Na ausência dos autores, desejamos não apenas suas ideias, suas palavras, mas, de algum modo, tocá-los, o que, me parece, que o virtual não atende: a letra, a força colocada na caneta, a ruptura das margens, o toque no papel… São coisas que conseguimos recuperar no papel, mas a mecanização da escrita eletrônica nos retira esse grau de personalização.
Aurea,
Passei 1h30 na pequena sala de literatura e artes. Com sua sensibilidade expressa, tenho certeza de que será uma experiência importante.
Aparecida,
Vi as publicações, mas já tardava e não pude avaliar com cuidado. Na net tem descrições importantes dos livros. Voltarei lá para tentar adquirir, seguindo sua sugestão.
Sophia,
Sei bem a emoção da sua amiga.
Eu tenho uma experiência similar a essa relatada por você, o que talvez tenha me sensibilizado ainda mais para o museu e para o post. Meu avô, que morreu quando eu tinha 2 anos de idade, tinha um caderno de assentos, no qual registrou ao longo de quase 40 anos pequenos episódios da sua vida privada e da pequena cidade do sertão nordestino em que morava: batismo dos filhos, preço dos produtos, impressões da vida política da cidade; primeiro relógio de pulso e carro a chegaram a cidade, primeiro assassinato,… uma espécie de biografia da vida da família e da vida da cidade foi sendo modestamente escrita. Seu primeiro registro foi do seu casamento. O último, da morte de parto da filha, que deixava 10 filhos órfãos. Começo e fim. Mas o último registro feito na caderneta não foi escrito por ele. No dia de sua morte, minha avó entregou a caderneta ao filho mais novo daquela sua filha que morrera de parto e mandou que o menino, criado por eles, registrasse em uma linha a morte do avô. Essa caderneta escapou do tempo e da nossa incapacidade de reconhecer a importância da nossa história. 2o anos após, meu pai começou um trabalho de reescrita dessa caderneta e de tentativa de recuperar as informações ali documentadas, dando um enredo mais ampliado àquele texto, misturando também com suas memórias de menino, contemporâneas aos escritos de seu pai. Escreveu 300 páginas. Todo esse material – a caderneta e o texto do meu pai e parte dos seus manuscritos -, hoje, está comigo e meu pai. Desde 2011, começamos um lento trabalho p/ organizar esse material para publicação. Meu avô e meu pai fizeram o que era possível no tempo deles, com o estudo que tinham (meu avô, as primeiras letras; meu pai, curso técnico/ensino médio) e com as formas de registro disponíveis – meu avô começa escrevendo à pena e termina com esferográfica (sinal dos tempos, Madá e Maurício)-, meu pai com manuscritos em grafite e depois digitado… Hoje, eu e meu pai, estamos tentando ensaiar ser pai/filha/autor/editora… Uma maravilha ter a oportunidade única de vivenciar isso.
Meus agradecimentos a Lina pela oportunidade e a todos do CP, pelos comentários, elogios ao texto, contribuições e debates. Vamos mais…
Lina
Tatyana
Belo relato e grande experiência de vida.
Evandro Barreto
Excelente post, em forma e conteúdo. Informações relevantes, imagens selecionadas com apuro, convite irrecusável. Parabéns, Tatyana, que venham outros relatos seus para a alegria da gente.
Parabéns, comentaristas, que, com sua sensibilidade e conhecimento, enriqueceram a leitura. Parabéns, Lina, pelo seu dom de reunir em torno da lareira do CP uma turma assim.
Da minha parte, receio não deixar rascunhos aos pósteros, já que minha letra anda cada vez mais parecida com um eletrocardiograma. Acho que é por isso que escrevo livros.
Abs a todos,
Dodô, o terror da caligrafia.
Aurea
Já inclui no meu roteiro quando for em maio. Sou bibliotecaria aposentada e passei grande parte do meu tempo em uma Biblioteca de Direito. Achei muitas anotaçoes interesantes nos livros antigos. Capitulos anotados à mao, letras lindas! Sei que vou me emocionar muito na visita
Sophia
Maurício, uma amiga próxima perdeu seu pai recentemente. Ele era um distinto professor doutor de uma instituição prestigiada. Coube à ela a tarefa de organizar as coisas que estavam no escritório da casa do pai após a morte. Ela encontrou anotações do início da década de 70, quando ele foi fazer o doutorado na Inglaterra e ela era apenas uma criancinha. As palavras dela me tocaram: “Meu pai guardou aquelas anotações por mais de 40 anos, de tão importante que elas eram para ele. Para mim, o conteúdo daqueles números e palavras não tem nenhum significado. Mas o papel por ele escrito e guardado com tanto cuidado por décadas tem. Não consegui jogar fora.”
Eu, adepta do computador e da era da ausência dos rascunhos, não deixarei esse legado. As únicas palavras que deixarei caligrafadas são as que rabisco nas margens dos livros. Isso se ainda houver interessados no futuro em querer o espólio em forma de biblioteca física.