Por Eduardo Carvalho
Nós o conhecemos por acaso. Jantávamos no Le Pré aux Clercs, na esquina das ruas Bonaparte e Jacob, quando o vimos sentado do lado de fora. Fumava muito e debatia questões que pareciam ao mesmo tempo densas e frívolas com uma morena jovem, magra, bonita e de cabelos negros.
Naquele momento determinamos que ela era sua aluna no mestrado, orientanda de Ciências Sociais ou Comunicação. Depois, outro coroa sentou-se à mesa e ficaram os três tecendo a noite, num bate-papo cheio de gestos e entremeado por goles de vinho.
Noutro dia, no mesmo lugar, lá estava ele de novo. Dessa vez, conversava com um jovem negro, alto, magro, muito forte e que tinha a perna direita contundida. Para nós, tratava-se de um bailarino machucado e falavam sobre o que deviam ser coisas do meio da dança e das artes em geral.
O nosso amigo tinha baixa estatura, cabelos grisalhos e um tanto revoltos, usava óculos redondos e se vestia com cuidadoso desleixo: calça e camisa gastas, em tons claros, blazer amarrotado e um surrado tênis Bensimon (tipo um que no Brasil já se chamou Conga, lembram-se?). Devia somar uns 65 anos de idade. Naquelas noites de verão, nós decidimos que ele era um grande e respeitado professor da Sorbonne. Batizamos o homúnculo de Le Professeur e assim criamos o nosso personagem de estimação em Paris.
Alguns dias se passaram. Bebíamos uma coisinha no Café de Flore quando vimos, estacionado em frente, o pequeníssimo carro branco que, numa das outras noites, havíamos imaginado pertencer a ele. Pensamos: “O Professeur deve estar por aqui, frequenta esse quarteirão”. Em seguida, avistamos a sua figura inconfundível, numa das mesas redondas de tampo verde do renomado café, conversando e fumando. Sorrimos satisfeitos. Ainda que só para nós, a nossa história fazia cada vez mais sentido.
Tempos depois, diante de nova ida a Paris, uma das coisas mais importantes para nós era revê-lo. Comprovar a nossa teoria a respeito dele ou quem sabe até lhe sussurrar um bonjour. Será que vamos reencontrar o Professeur? Essa pergunta rodopiou por meses entre nós.
Antes do novo embarque, formou-se uma pequena torcida organizada na família. Já de volta à cidade, nos primeiros dois ou três dias não tivemos nem sinal do nosso herói. Quando flanávamos por Saint Germain, redobrávamos a atenção: uma olhada para dentro de um café ali, outra na direção de uma banca de jornais acolá, e nada.
Chegamos a pensar que não mais o veríamos. Até que, num começo de madrugada, caminhávamos pela calçada quando, andando em sentido contrário no curto pedaço que separa os icônicos cafés Les Deux Magots e Flore, lá vinha ele.
Demos de cara com a sua cara enrugada, tão familiar, e por alguns segundos ficamos atônitos. Ele seguiu e nós, numa alegria indescritível, queríamos gritar que o Professor era nosso amigo. Aos pulos, repetimos muitas vezes um coro improvisado assim:
– Le Professeur! Est mon ami! Le Professeur! Est mon ami!…
Recobrado o juízo (ou não!), passamos a segui-lo por um quarteirão. Vimos quando olhou para as mesas do Flore e, não encontrando conhecido algum, seguiu seu rumo (de casa?), descendo a Rue Saint-Benoît até dobrar à esquerda na Rue Jacob e sumir na noite. Achamos melhor parar com a perseguição antes que o sujeito chamasse a polícia.
Estávamos realizados. Revê-lo nos deu uma sensação muito gostosa de pertencimento a todo aquele ambiente dos cafés, do bairro, da cidade. Ainda o encontramos de novo na mesma viagem, almoçando no Pré aux Clercs (outra vez!). Como desajeitados paparazzi, tiramos uma foto borrada com o celular e assim pudemos levar conosco, para sempre, o nosso Professeur de Saint Germain.
…
Muito do charme de Paris está na sua fauna humana, nos seus típicos personagens do cotidiano. “Achar” uma dessas figuras é um dos grandes prazeres que a cidade nos dá. Quem já viu o sujeito – qualquer um – de andar apressado levando uma ou duas baguetes debaixo do braço sabe do que estou falando. Se ainda por cima era inverno e esse cara vestia sobretudo e boina, pronto, esse encontro de poucos segundos é suficiente para pagar a viagem.
Para nós, o Professeur encarna de uma vez só os homens da baguete, os bouquinistes (aqueles “camelôs”) das margens do Sena, casais ou velhinhas solitárias que bebem champanhe numa daquelas pequeníssimas mesas na terrasse de um café movimentado. Ter a chance de dar um rosto e um enredo a essas criaturas que desde sempre frequentam o nosso imaginário é um prêmio que ganhamos de Paris. É uma recompensa tão inesquecível quanto a beleza avassaladora de seus prédios, parques, boulevares, praças, jardins e monumentos.
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Eduardo Carvalho, 41 anos, é jornalista. Não vive em Paris, mas Paris vive nele. É co-autor do site “Botequim do Vinho”, autor do blog Rua do Tempo Perdido e colunista de samba e Carnaval no site da Rádio Arquibancada (www.radioarquibancada.com.br). Mora no Rio de Janeiro, onde lançou, em 2010, o livro “Sambas, boemia e vagabundos” (Ed. Multifoco).
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5 Comentários
Mel
Adorável!! Me transportei c/ esse texto!
SILVIA SCHEMES
Ótimo texto! Me senti como se tivesse vivenciado a mesma experiência. Em nossa casa também temos este costume, adotar a pessoa que vemos com frequência, apelidar o personagem conforme suas características e tecer comentários sobre ele.
Sheyla Cordeiro
Que texto delicioso. Parece que você me tomou pela mão e levou consigo. Paris habita em muitos! Abraço,