Até hoje, não conheci ninguém que tenha viajado a Paris para visitar principalmente a Place de Ternes. No entanto, a praça é um ponto estratégico para quem pretenda conhecer a cidade que existe além do óbvio. De um lado, a avenue de Ternes e o charme discreto da burguesia, gente que vai à feira, mas leva seus cachorros adornados com bandanas coloridas. Na direção oposta, a rue du Faubourg Saint-Honoré e suas referências mundialmente conhecidas: as lojas de instrumentos musicais, a Salle Pleyel, o hotel Le Bristol, a Hermés. Depois que as portas do comércio se fecham, chegam os clientes da noite, não para comprar, mas para dormir, abrigados sob os portais do luxo. Emblematicamente, o Palácio do Governo dá as costas para o Faubourg.
Dobrando na avenue Hoche, chega-se a um dos endereços mais requintados e menos comentados do pedaço: a avenue Van-Dyck, que termina junto ao imponente portão do Parc Monceau. Obra-prima de paisagismo, o parque é rodeado por mansões da “belle époque” e povoado por legiões de adoradores do próprio corpo, que correm desabalados pelas alamedas e ameaçam atropelar os velhinhos que cruzam seu caminho à procura do sol.
Talvez você ache mais prudente sair da trajetória e retornar à Place de Ternes, mesmo porque depois da caminhada você deve estar com fome. Então você chega à brasserie “La Lorraine”, que abre às sete da manhã e só fecha de madrugada. Logo na entrada você depara com um grande aquário, onde o seu próximo almoço (ou jantar) nada alegremente, sem noção do que o aguarda. A casa é famosa pelos tesouros resgatados do Mediterrâneo, do Báltico, do Atlântico Norte, quem sabe, até das águas arrepiantes do Ártico. Enquanto você espera prepararem sua mesa com uma flute de champagne nas mãos, feche os olhos e procure escutar o barulho das ondas.
La Blonde e eu escolhemos o “La Lorraine” para jantar na primeira noite de reveillon que passamos juntos em Paris. Eu, hóspede contumaz dos hotéis da Rive Gauche, não conhecia o lugar, mas ela tinha belas lembranças de lá, inclusive de ceias de natal festejadas com os pais e irmãs na juventude. A escolha foi perfeita. Comemos e bebemos muito bem, em clima de festa civilizada e saímos a tempo de nos juntarmos à turba ululante na contagem regressiva em torno do Arco.
Voltamos lá outras vezes, inclusive com filha, genro e uma neta deslumbrada com a neve que caía lá fora. No retorno mais recente éramos só nós dois, numa noite de outono. Como sempre, o magnífico salão, recentemente restaurado, estava cheio de gente com fome de viver. Como sempre, o aquário exibia tentações e parecia esperar a vingança de Moby Dick. Mesmo com reserva feita de véspera, tivemos que aguardar alguns minutos no bar, mas doce é a espera quando você se entretém com uma taça borbulhante de Pommery Brut e o exame atento do menu.
Enfim conduzidos à mesa, sentamos ao lado de um jovem casal sueco, com todo jeito de quem já posou para folhetos sobre as atrações da Escandinávia. Diante de ambos, uma travessa de lagostins. La Blonde e eu, em sincronia cúmplice, evocamos uma daquelas cenas de filme que jamais se apagam da memória. Burt Lancaster, já no fim do percurso como personagem e como ele próprio, preparando com elegância e precisão esse mesmo prato. Um patriarca em sua dignidade, fisicamente próximo, mas a anos-luz de distância existencial da grande família que espalhava irrelevâncias pela casa de praia. O próprio Rochedo de Gibraltar.
Quem enfuna as velas com Pommery não comete o sacrilégio de mudar no meio da travessia. Assim, a escolha dos sólidos submeteu-se ao comando do líquido. Começamos com ostras irrepreensíveis (praires, de fornecedor exclusivo) e, como contraponto ao champagne, pequenos goles de água Evian.
Na seqüência, talvez em homenagem silenciosa aos nórdicos da mesa ao lado, La Blonde comandou um haddock, de onde se desprendia uma fumaça perfumada que parecia encobrir barcos vikings se esgueirando entre geleiras. Eu me senti rudemente prosaico diante das ainda que perfeitas noisettes d’agneau, meu primeiro experimento em coisas da terra firme, depois de tantas incursões às profundezas de La Lorraine. Da próxima vez, juro que volto à sensação de caminhar sobre as águas. Sobremesas constituiriam um excesso. Café e licor encerraram a saga.
De volta ao frescor da noite, a banca ainda aberta do florista português convocava a uma parada obrigatória em meio ao silencio da Place de Ternes.
Brasserie La Lorraine: 2, place des Ternes 75008. Clique aqui para reservar uma mesa
Esta crônica foi extraída do livro Na Mesa Cabe o Mundo, de Evandro Barreto, à venda no site Minha Viagem Paris.
Descontos e presentes aos leitores do Conexão Paris
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31 Comentários
David Almeida Schmidt
Baseado no texto, fomos conhecer o Lá Lorraine e gostamos muito.
Gostaria de dar uma recomendação de um outro restaurante, na Rue Poncelet, No. 28, que descobrimos por sugestão da Concierge de nosso hotel.
É o L’escient.
Simplesmente Divino.
É um típico francês, com opções maravilhosas e um preço justo (100 euros por casal, sem bebidas alcoólicas).
Não deixem de experimentar.
Rodrigo Lavalle
David, obrigado pela dica.
Abraços.
Lucia C
Simone
Clique no endereço do site da Brasserie La Lorraine, em vermelho, no fim do texto. La você pode conferir a Carte e os preços.
simone
lindo texto fiquei com agua na boca, irei ao La Lorraine, porém gostaria de saber a media de preços desta Brasseria
Beth
Patricia
Procura os textos do Dodô no http://www.comensais.com.br
E aqui no Conexão Paris…
Abs.
Patricia Duarte Simões Pires
Deliciosamente tentador este texto….
por favor onde posso encontrar mais textos do Dodô?
Já tens um livro publicado? senão bem que merece uma intimação pois será adorável ao coração, à alma, à vida…. parabéns!
Bruno
Gente,
Queria parabenizar o Dodô pelo texto, mas vejo algumas discrepâncias que me levam a escrever aqui. A igreja Ortodoxa não é a caminho do Feaubourg, e sim pra quem se dirige ao Parc Monceau pelo Blvd de Courcelles…
a unica loja de instrumentos que tem perto da Salle Pleyel é uma de Pianos (e realmente encontramos pianos Steinway la), quem quer encontrar instrumentos de sopro ou cordas tem mesmo que ir a Pigalle e/ou na Paul Beuscher (Av. de la Motte Piquet 15e arrdt ou na Bastille blvd Beaumarchais).
Me causa estranheza também ninguém ter comentado a respeito do “Gourmet des Ternes” (colado ao La Lorraine no blvd de Courcelles), pra mim um dos melhores restaurantes de carne de Paris (pedir a piece du boucher) e seu “esdruxulo” proprietario o Jean Phillipe (o cara teve um acidente de moto e ficou meio tantan depois… hilario). Sem contar que se quiserem encontrar “du people” la é um lugar privilegiado…Jack Nicholson, Gerard depardieu, e tantos outros
Não falar do DADA, bistrot colado a Rue Poncelet onde as quintas a noite todos os “Bobos” de diversos cantos de Paris se encontram para um happy Hour, na primavera e verão o terraço fica lotado de gente bonita…
Por fim, Dodô, a Av des Ternes é principalmente comercial, Darty, FNAC, e tantas outras, dizer que é Burguesia não acho que seja o termo correto.
Quero parabenizar pela narrativa sobre o “La Lorraine”, muito boa mesmo.
conexaoparis
Bruno
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